Quinta-feira, 14 de Junho de 2007

As Fábulas

Caríssimos leitores,
 
Muito boa tarde/dia/noite a todos.
 
Ao longo da história da humanidade, a transmissão de verdades profundas do homem sempre foram transmitidas primeiro por via oral e, posteriormente, por via escrita. Refiro-me a lendas, mitos, folclore, fábulas, etc.
 
Em séculos recentes apareceram os irmãos Grimm, La Fontainne, Hans Christian Andersen, entre outros que, por intermédio de histórias infantis, procuraram transmitir valores mais elevados do comportamento humano. Já antes tivémos esse grande best seller, intemporal e obra de ficção que é a Biblia mas este não é o tema de hoje.
 
Uma das histórias mais conhecidas (e que, com certeza, todos ouvimos enquanto crianças) é a fábula da formiga e da cigarra de La Fontainne. A mensagem importante desta história tem a ver com as virtudes do trabalho e as suas recompensas, face a uma vida de vícios e depravação.
 
A pergunta que fazemos, no século XXI, tem a ver com a actualidade desta mensagem e da virtude do trabalho. Será que as mais valias da moralidade e da virtude ainda se aplicam hoje? Será que a mensagem de La Fontainne está tão moderna hoje como estava no século XVIII? Afinal, quem era La Fontainne? Um moralista? Um puritano? Um idealista? Um Filho da Puta? Um mentiroso?
 
Vamos ver:
 
De nome José Formiga, este tuga conseguiu, com dificuldade, terminar os estudos obrigatórios (definidos pelo governo português) e desde novo começou em busca de um emprego que lhe permitisse conseguir o esperado dele... uma familia, uma casa, um carro, um cartão de crédito, uma divida e uma grade de minis da sagres, bem frequinhas, no frigorífico.
 
Aos 18 anos Zé Formiga ingressou como aprendiz numa oficina de electricidade e artigos eléctricos e fazia parte das suas funções arrumar o armazém, “alombar” com as encomendas dos clientes, limpar o escritório e dar apoio a todos os mais velhos, na esperança que alguns conhecimentos conseguissem atravessar aquela névoa cerebral permanente causada pelo uso constante de “aditivos” de marijuana e cerveja com que regalava os seus neurónios a partir das 18.00h de cada dia, excepto fins-de-semana, quando começava mais cedo.
 
Com algum sacrificio, um salário baixo, isto é, médio por padrões portugueses, a viver em casa dos pais e com a ajuda de um empréstimo Cofidis, comprou um honda civic de três portas de 1991 e a quem dedicava todos os tempos livres (entre emprego e “pedradas” de chamón não ficava muito) no seu passatempo de tunning.
 
Aos 28 anos, depois de dez anos como aprendiz, teve a grande oportunidade e foi trabalhar para uma unidade industrial de cablagens para a industria automóvel. Era um emprego a sério, numa multinacional a sério... mas num país de brincar que era Portugal. Agora que se sentia mais seguro e confiante resolveu, contra o parecer de amigos e namorada, retomar os estudos. Ele sempre sonhara em ter uma licenciatura e, assim, com trabalho e dedicação terminou o 12º ano (provisório, de acordo com a Ministra da Educação) e conseguiu ingressar numa instituição de ensino superior privado no curso de Gestão Alimentar Avançada, digamos a Universidade Independente, já com a nova direcção.
 
Na sua vida privada, depois de passada a fase do tunning, do chamón, da discoteca e de total abstinência de leitura, Zé Formiga seguiu as regras da sociedade e da moral. Casou e deu origem a 2 rebentos, ranhosos e mal-educados. A sua mulher, que seguia atentamente os apontamentos da moda das revistas de qualidade como a Lux, Caras e afins, era empregada numa loja de roupa de marca espanhola.
 
Aos 38 anos, Zé Formiga terminou a licenciatura depois de noites mal-dormidas, sem férias (não havia dinheiro para férias e propinas) e finalmente deixou a linha de montagem e passou para os escritórios da dita multinacional (que gozava dos privilégios dados pelo governo em prole do engrandecimento da economia nacional – refiro-me a não pagar impostos, segurança-social ou cumprir as mais básicas regras de bem-estar da sua mão-de-obra). Zé Formiga foi sempre um homem de trabalho, que procurou amealhar e providenciar o futuro dos seus filhos. Com 45 anos, uma casa ainda a pagar e uma uma renault scénic com 7 anos (mas bem conservada) e 4.516 euros numa conta a prazo, Zé Formiga chegou ao escritório às 8.45h, como sempre fazia, e tinha na sua caixa de e-mail uma mensagem da Direcção Financeira e Consultoria com o seguinte texto:
        
“Na busca de uma constante melhoria da sua estrutura e benefício dos seus trabalhadores, a Direcção Europeia decidiu que um downsizing é o melhor caminho para o crescimento da empresa. De acordo com a directiva emitida pelo Conselho de Administração global, a pressão do mercado tem sobre-aquecido a nossa estrutura de custos, nomeadamente salarial, e por forma a manter a nossa paridade e equidade com os valores desejados para as nossas acções vamos iniciar um processo de reformulação e re-configuração do organigrama interno, inserido numa perspectiva de adaptação e flexibilização dos desejos do mercado e imperativos decididos pela directiva comunitária 325-A-15 de Agosto do presente ano. É por isso que, com orgulho, a Administração central da empresa anuncia que apesar de um aumento de lucros de 45% no passado trimestre, iremos com esta nova avaliação dos benefícios internos e modernização, passar a um aumento de 72% de lucros por mês.
Assim, é notar que trabalhadores desta instituição acima dos 40 anos deverão negociar os valores de indemnização para sua saída efectiva a partir das 14.30h de hoje.
 
P.S.: esta mensagem tem efeitos imediatos. Amanhã os restantes trabalhadores receberão uma mensagem a informar o fecho desta unidade industrial (que desde sempre abasteceu o mercado europeu) para sua transferência para o Bangladesh, onde a mão-de-obra é burra de fazer dó mas ganha incomensuravelmente menos. Essa deslocalização começará depois de amanhã!”
 
Com suores frios Zé Formiga percebeu que estava no olho da rua e receberia uma ninharia. Estava fodido! Que fazer? Nada. Talvez o seu amigo de longa data! Era isso! Iria procurar o seu amigo.
 
Quem era o seu amigo? Dava pelo nome de António Maria D’labosta Cigarra, dos famosos Cigarra de Lisboa e Arredores. Desde pequeno nunca fez um “chavelho” nem estudou. Era filho de juízes, neto de médicos, bisneto de militares e sobrinho de políticos.
 
Durante a primária travou amizade com o Zé Formiga, o que os pais achavam muito bem em nome da igualdade e de ajudar os pobrezinhos. Enchiam o Zé Formiga de sorrisos benevolentes e cínicos quando ele ía lá a casa desentupir as sanitas, em nome da amizade. Perguntavam-lhe sempre se era esse ano que finalmente ía de férias e quando ele, o Formiga, respondia que não tinha dinheiro respondiam-lhe invariavelmente que deveria trabalhar, que o Formiga devia seguir o exemplo deles para ir longe. “Já viste Formiga, nós vamos a Bora-Bora de seis em seis meses e trocamos de carro de topo de gama todos os anos graças ao nosso trabalho. Trabalhamos muito e poupamos ainda mais e depois colhemos o fruto!” diziam com ar condescendente de quem tenta explicar a teoria quântica a um bosquímano.
 
Formiga sempre achou isto estranho porque eles estavam sempre em casa ou no Algarve ou em festas do jet-set ou em cerimónias oficiais mas, achava o Formiga, deviam de facto trabalhar muito nos intervalos desta frenética actividade social.
 
Mas voltando ao António Maria Cigarra! Nos tempos de liceu foi considerado o melhor aluno do liceu o que ninguém achou estranho, nem mesmo o facto do tio-avô da parte do primo em segundo grau ser o Director do liceu. Na faculdade, as suas capacidades de liderança foram realçadas e as suas notas tornaram-se ainda mais brilhantes, não obstante nunca ir às aulas, liderava os colegas nas saídas nocturnas aos melhores bares e discotecas onde tinha sempre uma garrafa reservada. Nem mesmo o facto do Primo da parte da mãe ser o reitor da faculdade e de os pais, avós, tios, primos, irmãos, afilhados dos pais e amigos de familia terem sido os seus professores em todas as disciplinas (o seu pai, por exemplo, foi seu professor em 7 das 9 disciplinas do 5º ano e foi muito exigente com o seu filho) impediram que o seu brilhantismo viesse ao de cima e terminasse o curso com média de 19,5 valores (não chegou aos 20 valores porque falhava sempre a escrever o seu nome).
 
Quando terminou o curso foi convidado para o Conselho de Administração de uma empresa que, por coincidência, era propriedade de um tio e que tinha negócios com o Ministério das Obras Públicas, tutelado pelo seu primo. Desde que iniciou a sua actividade sempre se destacou por não pagar impostos, despedir pessoal, levar empresas públicas à falência e, naturalmente, a aparecer nas revistas de referência de gestão e, também, na Lux e Caras.
 
O destino dos seus ordenados chorudos era uma conta numerada nas ilhas Cayman, aplicações em fundos duvidosos em off-shore e, também, vários bancos na Suiça e Ilha de Man. Na sua vida, António Maria Cigarra sempre se orgulhou de não ter tido uma única ideia original e de ter gasto uma gota de suor em trabalho.
 
Quando saiu da empresa, às 14.30h e com um valor de miséria de indemnização, Zé Formiga dirigiu-se ao restaurante de 7 estrelas onde sabia que iria encontrar o seu amigo a terminar o pequeno-almoço. Quando lá chegou, António Maria Cigarra estava a sair e dirigia-se ao seu ferrari, último modelo.
 
-- Zé! Estás bom? Há tanto tempo?! Quando foi a última vez? Deixa ver... foi quando as canalizações explodiram com os pensos higiénicos da mana, de marca Dior? – disse Cigarra com um sorriso.
-- Já foi há algum tempo sim... mas António Maria Cigarra (nota do editor: dada a importância do personagem, sempre obrigou os amigos a tratarem-no pelo nome completo), estou com um problema. Sabes, eu trabalho na multinacional e hoje de manhã recebi um e-mail a dizer que devido a reestruturação iria ser despedido – referiu Formiga
-- Sim... ouvi qualquer coisa nesse sentido na última vez que estive a almoçar com o primeiro ministro... sabes, o primo Sócrates.
-- É pá! Tu sabes que trabalhei a vida inteira e poupei mas se for corrido agora estou desgraçado. É que as minhas poupanças não chegam para duas idas ao Continente. Podes dar uma ajuda? – pediu Formiga, pela primeira vez, um favor para salvar a sua família.
-- Ó Formiga, tu sabes que eu sou teu amigo... do peito pá! Sabes, não sabes? Mas também sabes que eu ando com muito trabalho e apesar de fazer parte da Administração da Multinacional e ter sido a minha empresa de consultoria que deu o parecer para isto eu estou de mãos amarradas pá! Eu não mando em nada e tu sabes. Acho que a culpa é do porteiro mas esse tipo nem fala uma lingua decente... é Ucraniano, o cabrão! Mas tem calma pá! O Primo Sócrates disse que vamos no bom caminho e que com a minha ajuda ainda chegávamos lá mais depressa e olha que eu estou a pensar em ti. Tenho grandes planos para ti – disse António Maria Cigarra.
-- Mas amigo, eu estou à rasca é agora! Não podes dar uma ajuda? É que a mulher está grávida outra vez, não estávamos à espera e...
-- Ó Formiga! Nem penses em aborto ouviste! Sabes que eu sou contra essas coisas de assassinos e não-sei-o-quê. Sou a favor da vida e além disso onde comem quatro, também há para mais um não é verdade? Tu não te desgraces homem porque isso do aborto é mesmo para gente pobre – disse António Maria Cigarra, com ar enojado e a pensar que a gente pobre é mesmo irritante com este hábito horrível de se reproduzir quase às ninhadas.
-- Mas Antó... – começou o Zé Formiga.
-- É pá, foi mesmo bom ver-te. Temos de nos encontrar mais vezes mas agora vou ter de ir. Tenho um avião à espera. Eu vou com o primo Sócrates a uma visita de estado aos Estados Unidos e passamos ainda pelo Quénia... acho que ele quer fazer mais um safari, o meu primo. Tu sabes como ele é. Precisa mesmo de descomprimir devido ao trabalho que tem. Mas está descansado pá. Eu estou mesmo a pensar em ti e vou-te arranjar uma coisa mesmo boa – disse António Maria Cigarra enquanto pensava para os seus botões “a limpar fossas assépticas, meu grande parvalhão! És mesmo chato Formiga... da-se!”
 
Esta é a fábula moderna sobre a virtude do trabalho, da dedicação, do esforço, do valor maior da moral e da virtude!!
 
Ó La Fontainne... e se fosses para a puta que te pariu mais as tuas ideias que o trabalho compensa? És mesmo um grandessíssimo alarve, meu animal!
 
Voltarei em breve
 
Um abraço
 
MS
publicado por GERAL às 18:04
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